terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Devir-mulher: uma análise rizomática na construção contemporânea do desenho como obra de arte


“O que é desenhar? Como se chega a isso? É a ação de abrir uma passagem através de um muro de ferro invisível, que parece se encontrar entre o que se sente e o que se pode. Como se deve atravessar esse muro, pois de nada serve golpeá-lo fortemente; deve-se minar esse muro e atravessá-lo com o auxílio de uma lima, lentamente e com paciência, a meu ver.”
Antonin Artaud (8 de setembro de 1888)


"Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos intercambiantes. A pergunta 'o que você devém?' é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos."
Gilles Deleuze (1998)

No capítulo “Literatura e Vida” de Crítica e Clínica, Gilles Deleuze diz que o ato de escrever é um “jamais pronto” e estabelece a literatura “sempre como um devir”, uma forma “sempre inacabada”, “em via de fazer-se” e que “extravasa qualquer matéria vivida ou visível” (DELEUZE, 1997, p.11). Artes diferentes, meios diferentes, mensagens diferentes, mas ainda assim essas mesmas considerações de Deleuze podem ser transpostas para o desenho, também inseparável do devir e ainda do por vir.

A arte contemporânea, saturada pelo poderes da mídia, entranhando suas garras por todos os níveis sociais, quebra, assim, com o sistema de signos em uma perspectiva cartesiana e positivista e inaugura a era do simulacro. Assim, na era em que se tem o apagamento da representação, pois se evidencia a impossibilidade de tal tentativa, especialmente na linguagem (deixando sempre um resto de significado indecifrável), o simulacro é tudo o que resta. Dessa forma, não mais o desejo de imediatidade, de referência direta e absoluta com a realidade, o devir apresenta-se também como um simulacro.

Em um de seus mais conhecidos textos, Simulacros e Simulação, Jean Baudrillard retoma as questões envolvendo as ordens do simulacro, já trabalhado anteriormente em Symbolic Exchange and Death, e “estilhaça” ainda mais qualquer possibilidade de real na sociedade contemporânea tecnológica. Partindo da alegoria do mapa que representava tão bem o país em questão que acabou por ter as mesmas dimensões do plano concreto, Baudrillard destrói inclusive esta alegoria de busca pelo real, pois só há hoje a impossibilidade dela, é o simulacro (e não mais a representação) que tem espaço no hoje e é ele que precede o próprio real.

Mas é quase no final do texto, no capítulo Simulacros e Ficção Científica, que o autor retoma as três categorias (ou três ordens) de simulacros da seguinte forma:

Três categorias de simulacros:
- simulacros naturais, naturalistas, baseados na imagem, na imitação e no fingimento, harmoniosos, optimistas e que visam a restituição ou a instituição ideal de uma narutreza à imagem de Deus,
- simulacros produtivos, produtivistas, baseados na energia, na força, na sua materialização pela máquina e em todo o sistema de produção – objectivo prometiano de uma mundialização e de uma expansão contínua, de uma liberdade de energia indefinida (o desejo faz parte das utopias relativas a esta categoria de simulacros),
- simulacros de simulação, baseados na informação, no modelo, no jogo cibernético – operacionalidade total, hiperrealidade, objectivo de controle total.
À primeira categoria corresponde o imaginário da utopia. À segunda a ficção científica propriamente dita. À terceira corresponde – haverá ainda um imaginário que responde a esta categoria? A resposta provável é que o bom velho imaginário da ficção científica morreu e que alguma outra coisa está a surgir (e não só no romanesco, também na teoria). (BAUDRILLARD, 1991, p.151)

Assim, utilizar os conceitos de Deleuze em uma desesperada tentativa de se teorizar sobre a arte de desenhar, especialmente quando essa arte não se insere naquilo considerado convencional é uma empreitada verdadeira de se estabelecer, mesmo que minimamente, as forças que se entrebatem dentro do indivíduo no momento de devir. Assim como à “função fabuladora inventar um povo e não se escreve com as próprias lembranças” (DELEUZE, 1997, p.14) compete também a imaginação, dessa vez a do desenhista, inventar uma mulher, um simulacro de mulher, sem referencial preciso, mas compartilhadora de todas as generalidades que compõem todas as mulheres factuais.

É na busca por esse devir-mulher que este ensaio pretende apresentar notas, não mais que notas sobre uma obra específica, integrante de um conjunto triádico de construções de um simulacro de mulher do artista gaúcho Evandro Mesquita Lucas. Formado em Artes Plásticas pela UERGS, Mesquita desenvolve trabalhos na área de criação artística para revistas em quadrinho, inclusive com projeto de título próprio ainda a ser lançado (a princípio a HQ se chamará The Monkey’s Paw), já participou de exposições (Exposição Curto-Circuito na Galeria de Arte Loíde Schwambach com apoio da FUNDARTE) ao lado de outros artistas da cena atual. Em seus desenhos[1], Mesquita explora a quebra com os paradigmas de representação do real, caminhando em direção a uma proposta de fuga, de devaneio da criação, como nos dois exemplos a seguir:

Figura 1: O Cramulhão[2]


Figura 2: Possíveis efeitos colaterais

Dois exemplos que demonstram a força criadora do artista, mas que de forma alguma chegam a “fechar” o restante da produção em um mesmo ciclo. Observa-se, aqui, a existência de linhas de fuga, pois não se defende a postura dicotômica entre o que é e o que parece, ou o que deveria parecer e o que de fato é, quebrando assim as disjunções pré-estabelecidas, ainda mais que os possíveis referenciais dessas obras não são diretamente localizáveis no mundo dito real.

A obra específica de Mesquita selecionada para esse ensaio não permite descrição, é necessária a visão individual para consideração de sua potência. No desenho, encontra-se a seguinte descrição: “Não consigo pensar em um título para esse. Que obra! Quando terminei, comparei com os anteriores e tive vontade de refazê-los todos. Preocupei-me com cada detalhe de forma mais angustiante que o normal. O fundo fiz com minúcia para que tudo ficasse concreto, para que os traços se completassem realmente. Porém, preciso melhorar ainda um pouco da perspectiva e a relação com o espaço. E outros problemas, já que eu comecei a fazer ele em Outubro do ano passado, larguei de mão e só terminei semana passada, por isso está um pouco irregular, com diferentes grafismos inseridos. O lado bom é que, ainda assim, ficou congruente. É um delírio só isso aí. Bem, as citações são as mesmas de sempre, daquele certo livro, nem é necessário explicar. Espero que alguém compreenda.”. Em mãos da descrição do artista, convém contemplar a obra.

Figura 3: “Não consigo pensar em um título para esse”

Assim como o simulacro, o devir também possui existência própria; ele não se encontra em analogia com o mundo onírico ou imaginário, ele é o próprio real nessa construção. Dessa forma, a confluência entre a mulher que é e a que se insculpe no papel pela linha assistemática e difusa, não é nem a mulher factual, nem a mulher representação, mas um outro real de mulher que vale por si mesmo, um novo signo, construído pelo movimento do simulacro.
É somente com a observação da obra propriamente que se pode compreender qualquer reflexão que se proponha. Fica patente que a construção do artista não se limita nem às fronteiras do papel, pois se vê claramente a continuidade que a margem exige suprimir. É o desenho rizoma em sua mais alta intensidade e sem desconcerto é possível agora citar Deleuze (1995) em Mil Platôs:

Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza, ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo... Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades.
           
Embora o conceito de rizoma de Deleuze refira-se, em última análise, à tentativa de um novo paradigma de pensamento e conhecimento, tentando assim, entre outras coisas, romper com a hegemonia da genealogia dos colonizadores e da visão cartesiana ocidental, o conceito pode ser aplicado igualmente às artes, em busca não mais da representação como função de imediatidade entre o representado e o real, mas um sistema a parte que vale por si só. Dessa forma, “o rizoma é portanto um antimétodo que parece tudo autorizar” (ZOURABICHVILI, 2004).

Espera-se que as notas que aqui foram apresentadas tenham alcançado minimamente seu objetivo, delimitar o não-delimitável que é o próprio devir e não na literatura, mas nas artes plásticas. Sumariamente, o desenho de Mesquita é também um devir-mulher, em oposição à arte de representação que firma-se sobre a égide de uma forma de expressão dominante (por isso masculina), pois forma inacabada, não-delimitada, mas também não fugidia; é um devir-mulher que se encontra em si mesmo, no limiar da névoa e por isso evanescente: “Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma mulher (...)”.       


REFERÊNCIAS

ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p.257-290.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d'Água, 1991.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. p. 184.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: 34, 1997. p.11-16.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. 1 v. p. 11-37.
ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p.128.




[1] Algumas obras do artista encontram-se disponíveis para visualização na seguinte página da web: <http://www.flickr.com/photos/evandromesquita/with/3881369445/>.
[2]  Descrição do artista: “Estava lendo "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Barbaridade. Logo de cara, esse trecho que segue levou-me ao delírio: Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser - se viu - ; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram - era o demo.”

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Com ovo é mais cinquenta centavos

Putz! Ta começando a chover e parece que essa merda de ônibus não vem hoje!
Por que eu tinha que ser pateta? Por que não consigo prestar atenção nas coisas e fazer tudo corretamente pra que não tenha que fazer de novo?
- É parece que vai chover mesmo! E eu nem trouxe meu guarda-chuva. Também, com o sol que fazia mais cedo né?
- É mesmo! Por que ela tá falando comigo? Por que as pessoas sempre acham que devem ter conversas inúteis e amenas com desconhecidos?
- Vai pra onde? Eu to indo pagar um monte de conta no banco! É...a vida é isso mesmo! Trabalha-se, trabalha-se e pra quê? O dinheiro vai embora em contas!
- Pois é, né, senhora! Muito esperta mesmo! Dizendo que ta indo pagar contas num banco! Podia segui-la e roubar toda a grana dela!
- É verdade mesmo! Eu trabalho há trinta e dois anos no mesmo lugar, faço a mesma coisa há trinta e dois anos e nada muda. Eu ganho a mesma coisa nesses anos todos, porque nunca consegui comprar nada muito diferente nesse tempo todo. Só o dinheiro que muda mesmo, porque o que se ganha? Nem pensar.
Será que eles não vão parar com essa conversa mesmo? Não aguento mais. Alguém cala a boca desse velho chorão. Não me conta nada, não reclama da vida pra mim. Não quero ter que sentir pena de vocês. Ou pior, me ver em vocês daqui um tempo.
Eu não. Foda-se! Eu não acabo assim. Meu trampo rende e com o tempo dá pra juntar uma grana boa. Mas o negócio é guardar, poupar. Nada de sair por aí aproveitando a vida e esbanjando!
Bem que o Drica podia me chamar pra mais coisas. Daí, sim, tudo mudava. Podia até pensar em gastar um pouquinho, fazer umas festinhas.
Acho que se eu me der bem dessa vez, ele me chama pra coisas melhores, me passa serviços mais importantes que pagam melhor. Ah! Que se dane. To feliz assim, por enquanto. Também não dá pra viver dessa merda a vida toda. Acho que ninguém consegue.
- Ei? Ouviu?
- Não senhora? O que foi? Não viu que eu to com fone no ouvido?


"Run run run run run run
And you cannot run or ever, ever escape
You cannot run or ever hide it away
Something glourious is about to happen
The reckoning"

- Ele te perguntou as horas. É que eu to sem relógio.
- Quase uma e vinte.
- Mas já tem uns dez, quinze minutos que to esperando.
- Eu to aqui tem uns 20.
Não entendi porque comentei isso. Não quero que ela continue falando comigo. Vou olhar pra outro lado. De repente ela para de falar comigo.
- Olha! Vê se faz tudo direito. Não quero ter que tapar buraco teu depois. A mulher é irritada e cheia de mania. Não faz pergunta nem comentário idiota e não tenta parecer amigável com ela. Ela não quer fazer amizade contigo, então deixa ela na dela. Entendeu?
- Sim. Pode deixar. É entregar e sair. Qual é mesmo o nome dela?
- Pra que tu quer o nome dela? Eu não acabei de te dizer que ela não é de muitos amigos? Não interessa. Chega, entrega e sai. Simples como a vida deve ser.
Odeio ter que fingir que sou uma besta pra tipos como esse. Mal sabe falar, come feito um bicho, mas tá aqui mandando em umas cem cabeças no mínimo. Foda-se. Sorria e concorde com a cabeça, esse é meu lema. Mas o concordar aqui é puramente um sinal de desdém total a quem te manda fazer alguma coisa. Enfia o teu “entendeu?”, seu merda.
- Certo. Sem perguntas, sem comentários.  Chegar, entregar e sair. Saquei.
- Belezura. Então não vai ter problemas. Teu pagamento é só semana que vem, depois do trabalho feito e conferido. E não me aparece aqui até terça que vem. Entendeu?
Se ele disser “entendeu?” mais uma vez, eu vou...Merda! Não vou fazer é nada. Preciso desse bosta.
- Vou indo nessa. Às 14h então? Ta entendi, às 14.
Bosta de ônibus que não vem. Se eu molhar meu casaco da Adidas...
- Acho que é ele lá na esquina. E é mesmo.
Puta que pariu! Cadê a mochila? Cadê?
Não tem como passar o dia sem nada no estômago! Minha vó sempre me disse isso e eu segui. Não tem como, tem que comer. Fui comer. Vê um cachorro e uma coca. Quer completo? Como assim? Salsicha, molho, tomate, ervilha, milho, queijo ralado, batata-palha, ketchup e mostarda. Vai querer completo? Sim, sim. Não... tira o tomate. O tomate ta no molho. Mas tu disse: molho, tomate... Pensei que fosse separado. Tu já viu molho de tomate sem tomate? Cada um que me aparece! Vem com ovo? Pode vir se tu quiser, cinquenta centavos a mais. Ta, pode ser. É pra comer aqui ou pra levar? Pra comer aqui. Só aguardar. Pedido número 7.
Gente burra atendendo. Eles não sabem que isso afasta cliente? O Drica sempre diz: se teu trabalho for mal feito, não tem pedido novo. Ponto final. Sem pedido eu não ganho, se eu não ganho, vocês não ganham. Mas ela vende comida. Comida é uma coisa que mesmo quando tu não tem dinheiro tu acha um jeito de ter. Ta certo que as crianças africanas não comem por dias e não morrem. Mas também têm aquelas barrigas enormes cheias de vermes. Que delícia pra se pensar antes de comer. 
- A senhora viu minha mochila? Tava aqui do meu lado o tempo todo. Não pode ter sumido.
- Não vi mesmo, que pena. Acho que quando cheguei não tinha mochila nenhuma, mas posso estar enganada.
- O senhor viu? Uma mochila que tava aqui comigo?
- Não mesmo. Como era?
Que diferença faz se tu disse que não viu?
- Preta com caveiras azuis. Tava aqui do meu lado.
- Não, sinto muito.
Caralho, o Drica vai me matar. Perdi o treco da mulher.
- Bem na hora que o ônibus chega, a chuva começa a cair. Não somos tão azarados, somos?
Cala a boca velha do inferno!
- Mas não é que eu sentei em cima da tua mochila. Aham...sentou. Colocou foi é 120 kg de carne em cima da minha mochila. Alívio. Sem mortes essa semana. Sem a minha morte. A entrega ta inteira. Você não tava esperando o ônibus? Vai me dizer que não vai subir agora?
- Vou sim. Cadê a carteira! Um, dois, dois e vinte e cinco... Peraí... um, um e cinquenta, noventa, dois, dois e vinte...
- Quanto é mesmo a passagem?
- Não sei, eu sou aposentada. Não pago. Quanto é mesmo a passagem?
- Dois e setenta e cinco.
- Droga!
- Que foi?
- Tá faltando 50 centavos!
- Não se preocupe. Deus me dá em dobro. Toma aqui.
Olha moça, ta aqui sua encomenda. Obrigada. Toma aqui...esse é pra você. Não posso aceitar. Fica entre nós. Certo então. O lance que a senhora pediu...chegou direitinho certo? Ta, ta ok. Perfeito. Ah... antes que eu esqueça. Seu chefe ligou antes. Disse pra você voltar à central. Ele disse que a empregada dele encontrou com você na fila do ônibus, mas só te reconheceu depois que você desceu. Ela contou pra ele que você tinha perdido uma mochila. Ah sim, foi mesmo. E ela fecha a porta. Valeu!
“É... não converse com velhas enquanto espera pelo seu ônibus”, já dizia minha vó. Talvez ainda tenha morte essa semana. So fucking useless!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Suplemento

su.ple.men.to
sm (lat supplementu) 1 A parte que se junta a um todo para o ampliar ou aperfeiçoar; aquilo que serve para suprir qualquer falta. 2 Aditamento a um discurso ou exposição anterior no sentido de os completar ou de preencher quaisquer lacunas; o que se ajunta a um livro para o completar. 3 Adição natural ou necessária; complemento. 

supplement
late 14c., from L. supplementum "something added to supply a deficiency," from supplere.

suplemento
"uma adição, um significante disponível que se acrescenta para substituir e suprir uma falta” (DERRIDA, Jaques. 1976, p. 88)


Quando eu troquei o real pelo fictício? Quando eu troquei um peito de verdade por um filme pornô hardcore de quinta categoria? Acha que eu sei? Se soubesse, não estaria perguntando. Quer dizer...eu sei quando eu troquei. Talvez a pergunta não esteja correta. Talvez devesse ser “por que eu troquei um peito de verdade por um filme pornô hardcore de quinta categoria?”.
Peitos de verdade dão trabalho. Peitos de verdade te pedem pra ir no cinema, pra ir a restaurantes, te pedem carinho e essas coisas que peitos de verdade costumam pedir. Eu não quero peitos de verdade pedindo coisas. Quero peitos fictícios.
Se eu sair pra pegar cigarro, vou ter que vestir uma roupa, colocar tênis...to fedendo? é, um pouco de asa. Página de perfil, atualizações. Nada de diferente pra ler! E eu com a tua família? Por que as pessoas ficam postando todas as fotos idiotas das suas vidas idiotas? “Olha meu novo cachorro!” “Encontrei um adestrador para meu novo cachorro.” Se a Força funcionasse com as pessoas de mente fraca pelo sinal de internet, eles tavam fodidos!
Quero um cigarro! Só tem erva! Não serve, não agora. Por que não agora? Só porque é cedo? Cedo pra quê, caralho? Mal dá pra enxergar lá embaixo. Apenas pontos que se movem. Pontos que não fazem a menor diferença na minha vida. Ou fazem? Eu existo, aqui, sem eles, sem ninguém, sem alguém.
Ninguém ou alguém. Qual a diferença? Tou filosofando demais. O jeito é fechar um por enquanto. Na Tunísia, as pessoas estão se matando. Que novidade... as pessoas estão sempre se matando. Guerra...a guerra nunca muda! Ou seriam as pessoas? Em Tróia os caras lutaram por peitos de verdade, por isso prefiro peitos fictícios ou peitos que não pedem nada, como peitos pagos. É...hoje era uma boa!
Calor, cerva gelada, um boquete e uns peitos pagos...FTW! Mas como eu queria um cigarro agora! Só tem seda grande...nops. Se eu tivesse saído ontem, podia ter comprado cigarros e os peitos de verdade podiam estar aqui fumando comigo. Ou eu podia estar fumando sozinho, mas teria cigarros agora. Um copo limpo nessa casa é raridade. Cabelo?
Duas semanas e ainda tem cabelo aqui? Na cama tudo bem, não durmo lá tem o quê...uns seis dias? Mas no sofá e na minha roupa é demais. Nojo. Cabelo pela minha casa. A casa é suja, mas reminiscências pelo arquivo indesejado já é demais. Podia prender aquela porra...fazer uma trança ou algo assim. Mas não! Eu estive aqui, veja meu cabelo pela casa...eu sempre estarei aqui.
Eu não te quero aqui. Puta que pariu, quero um cigarro. Não vou descer agora.
Mensagem no celular: “Você acaba de ser sorteado! Tem direito a uma chupada. Seu prêmio deve ser resgatado em 10 minutos no quarto ao lado ou será dado a outro”. O prêmio está no quarto, deitado de cabeça pra baixo. Os cabelos pendurados. Larguei o cigarro e os peitos de verdade pediam por mim. Na meia luz do quarto, ela colocou na boca, mexeu de forma delicada, mas firme... Gozei na boca dela. Ela sorriu. Peitos de verdade que te fazem querer foder mesmo tendo acabado de gozar. Gozei de novo. Ela apertava entre os dedos o lençol que não era trocado tinha semanas (a empregada se demitira). Ela gozou.
Merda de cabelo pela minha roupa. Como pode estar por tudo? Preciso de um cigarro. Sem cigarro, só com seda longa...punheta.
Sem som pelo apartamento, o mundo tá lá embaixo, longe. Os cabelos pela casa e ela não sei onde. Não que me importe. Não que não seja nela que eu pense agora. Mas são só peitos de verdade inspiratórios. Nothing more nothing less.

Don't get offended
If I seem absent minded
Just keep telling me facts
And keep making me smile

Meio-dia. Ainda todo o dia ainda! Preciso de um cigarro. Podiam vender por tele-entrega. Não vendem remédios? Cigarros são como remédios. As pessoas podem morrer sem eles, assim como podem morrer com eles. Um copo limpo e água. Depois, um cigarro. Podia ser uma coca. Não tem coca. Vou ter que descer. Tou fedendo.
Quer um café, uma água? Tem coca? Não. Café então. Peraí, vou lavar um copo. Tudo bem. Pode trocar de lugar? Prefiro esse que tu tá sentada. Tudo bem. Vai me dizer que tu analisa a posição do sofá? A direção do vento? Sim. Por isso prefiro esse lugar. Toma aqui. Obrigada. Que tá vendo? Só um curta de animação. Tava baixando ontem e agora finalizou. Quer ver? Pode ser? Tem mais café? Já tomou? Tava com sede. Quer outra coisa? Quer dizer...só tem água ou café. Café. De quem é a animação? De um cara sueco. A menina parece contigo. É? Deixa eu ver. Parece...o cabelo principalmente. É, é o cabelo.
Eu não abracei, mas queria ter abraçado, mas não abracei. Só ficaram os cabelos. Eu mandei embora. Não quero cabelos na minha roupa. Não quero peitos de verdade pedindo coisas. Preciso de um cigarro. Para o almoço: Doritos, banana e chocolate. E água.
Estômago. Dor. Sono. Quatro horas e quarenta e quatro minutos depois. Ainda dor ainda. Carteira de cigarros. Não tem cigarros. Preciso de um cigarro. Sem banho, desço.  Oi, porteiro. Tchau, porteiro. Mentira, nem olhei.
Na carteira, nenhum dinheiro, mas tem cartão. Com cartão, só o pacote moço. Só o pacote? Só o pacote. Me dá um pacote então. Com um pacote, sigo feliz. Ainda fedendo. Alguém ou ninguém sentiu?
Um pacote, dez carteiras. Dias de cigarro. Dois dias de cigarro e não tem mais cigarro. Punheta. Punheta. Punheta. Cabelos pela casa. É melhor limpar. 

domingo, 27 de novembro de 2011

O Video Game como Transposição do Desejo de Representação para o de Simulação*


O homem contemporâneo encontra-se irremediavelmente marcado, modificado e, até certo ponto, determinado pela tecnologia que o cerca e, em contrapartida, também a marca, modifica e determina. A busca pelo racionalismo demonstra, nas culturas ocidentais, uma especialização dos meios de comunicação no sentido de que essas mídias correspondam às necessidades que surgem justamente por essa mesma especialização. Os video games correspondem, no paradigma tecnológico atual, a uma mídia com cruzamentos em outros níveis culturais, tanto em sua extensão para outras mídias e vice-versa como nos meios de produção e as relações de poder nesse sistema.

Nesse sentido, o video game encontra-se situado no limiar de algumas, senão várias áreas de conhecimento, a saber, Filosofia, Antropologia, Psicologia, Teoria da Literatura, Estudos de Jogo e, obviamente, Engenharia e Ciência da Computação e pensar nesse suporte considerando apenas uma dessas áreas não só limita as reflexões possíveis como também circunscreve o video game a apenas um paradigma de pensamento.

Não há dúvida de que os video games compartilhem caraterísticas poéticas comuns aos modos diegéticos e miméticos, a saber, ações encadeadas, um tempo, um espaço, personagens, narração e diálogo, sem mencionar o grande potencial em storytelling observável em diferentes gêneros de video games. E este detalhe não deve ser, em nenhum momento, esquecido. Entretanto, concorrem na realização de toda a atividade em que se circunscreve o gameplay fatores que vão muito além das características diegéticas e miméticas relacionadas anteriormente; o video game encontra-se no limiar disso, partindo para um caminho de modo de simulação, no qual o jogador deixa de ser leitor/espectador e passa a ser ator/criador.

Assim como outro elemento cultural, o video game corresponde, até certo ponto, a uma das linhas de confluência de uma série de mídias e produtos midiáticos e tecnológicos e por esse motivo, poder ser pensado como participante de um sistema dinâmico, em constante alteração. Dessa forma e justamente porque se insere dentro de um sistema maior, o video game não pode ser pensado de forma isolada, mas, sim, pelo pensamento em rede, possibilitando, então, uma compreensão além da formalista, indo para o campo psicológico e filosófico.

Pensando dessa forma, é necessário que se entenda, mesmo que de forma básica, como essa concepção de videogame, como parte de um sistema dinâmico maior, se apresenta. Em linhas gerais, o mundo está organizado por sistemas, alguns naturais outros culturais (a discussão sobre essa dicotomia é extensa e não necessária nesse trabalho, mas pode oferecer diversos subsídios para que se possa melhor entender o funcionamento de alguns elementos naturais e culturais), baseando-se em elementos que aparentemente, mas só aparentemente, parecem aleatórios. De acordo Edward N. Lorenz (1995), as condições iniciais estão no centro de investigação de experimentos dos mais diversos que exploram os sistemas que compõem o planeta, tanto os lineares como os não-lineares. No entanto, as condições iniciais de um sistema podem representar, de fato, em um estudo as condições iniciais de um evento, mas, ao mesmo tempo, essas mesmas e exatas condições podem representar os elementos do decurso de outro evento bem como os elementos finais de um terceiro.

Expostos alguns pontos sobre a relação de elementos dentro de um sistema, pode-se pensar, a partir disso, no video game inserido, então, dentro do sistema dinâmico dos produtos tecnológicos. Ele obedece (não há dúvidas disso) a necessidades mercadológicas, e seu aperfeiçoamento exige computadores e consoles cada vez mais especializados e poderosos; do contrário, não haveria “evolução”. Assim considerado, é possível observar como o video game não se coloca como objeto independente (acredito que não exista tal produto), mas, sim, como uma das linhas que formam a rede tecnológica em que se insere a comunidade ocidental contemporânea.

Mas não somente de sistemas e de video game como produto cultural fez-se esse artigo. Ele se insere também num sistema maior, na tentativa de pensar sobre algumas das questões que chamam atenção de diversos pesquisadores de jogos, especialmente os narratologistas, como os elementos que o aproximam tanto da narrativa como do drama (entenda-se drama como ato de encenar).

Sendo assim, parte-se da hipótese de que alguns gêneros de video game representam uma nova possibilidade de recepção da obra de arte – obra de arte, pois o video game já tem garantido esse estatuto (quer algumas pessoas gostem ou não) –, um salto dos modos diegético e dramático para o modo de simulação operacionalizado pela construção representativa de imagens e sons através da mídia propriamente.

É preciso, então, pensar nesse desejo, interesse em representar, encenar, fazer-de-conta que parece tão apaixonante aos olhos das crianças, mas que, na verdade, permanece no humano mesmo em sua idade adulta. O ato de representar, de encenar a vida, nasce junto aos rituais mais primitivos humanos, os rituais de representação das colheitas, da passagem de uma estação do ano para outra, dos eventos cósmicos, das oferendas aos deuses, etc. O ritual, o culto, então, funcionou por muito tempo como a base para a encenação, para o drama como representação da vida. Como afirma Huizinga (2000), “o culto é, portanto, um espetáculo, uma representação dramática, uma figuração imaginária de uma realidade desejada”. Nesse sentido, o culto servia como instrumento, ao lado da criação mítica, para dar forma à consciência que a humanidade tinha do mundo que a cercava. Mais além, Huizinga (2000[1]) defende que, mais do que o ritual,
(…) o que é importante é o próprio jogo. O ritual não difere de maneira essencial das formas superiores dos jogos infantis ou animais, e dificilmente poderia afirmar-se que estas duas últimas formas tenham sua origem numa tentativa de expressão de qualquer emoção cósmica. (…) Diríamos, então, que, na sociedade primitiva, verifica-se a presença do jogo, tal como nas crianças e nos animais, e que, desde a origem, nele se verificam todas as características lúdicas: ordem, tensão, movimento, mudança, solenidade, ritmo, entusiasmo. Só em fase mais tardia da sociedade o jogo se encontra associado à expressão de alguma coisa, nomeadamente aquilo a que podemos chamar “vida” ou “natureza”.

De acordo com Martin Esslin (1978, p.13), o drama funciona, ao mesmo tempo, como manifestações do instinto de jogo, do ritual e do espetáculo e acrescenta: “nenhuma dessas atividades pode ser considerada como drama em seu sentido adequado, porém as linhas divisórias entre elas e o drama são, na verdade, extremamente fluidas (...)”.

Então, o drama, a representação e a encenação são rituais baseados em regras que regem o jogo que aí se desenvolve. Aqueles que participam dessa encenação dão vida à abstração que jaz na consciência e tornam o real imaginado em simulação daquilo que acreditam ser a verdade; esses seres responsáveis por tal encenação são os atores e sem eles não há ação. Mais além, Esslin (1978, p.16) afirma que o “drama é ação mimética, ação que imita ou representa comportamentos humanos. O que é crucial é a ênfase sobre a ação”.

Relacionada ao ato de encenar está a necessidade humana do faz-de-conta, da simulação, de fingir ter o que não se tem. Alguns autores consideram que essas brincadeiras de faz-de-conta, para as crianças, podem funcionar como instrumento de treinamento para a vida quando adulta, como um exercício de vida anterior ao evento verídico. Chateau (1987, p.29) explica que o jogo tem para a criança a mesma função que o trabalho tem para o adulto: “Como o adulto se sente forte por suas obras, a criança sente-se crescer com suas proezas lúdicas”. O jogo, então, está no cerne da construção do indivíduo. No entanto, não se pode afirmar que o jogo, o instinto de jogo, seja inato no ser humano, mas que este faz parte da essência humana em seu desenvolvimento é inegável.

O drama, no entanto, diferentemente do video game, não é uma mídia, assim como a fotografia, a televisão, o cinema o são, ainda que trabalhe com os elementos de imersão e de  realidade representada. De acordo com Bolter e Grusin (1999), “as novas mídias remodelam formas midiáticas anteriores e, ao lado da imediatidade[2] e da hipermediatidade[3], a remediação é um dos três traços da nossa genealogia das novas mídias”[4].

Pela proposta dos autores, os video games seriam remediações de jogos anteriores, como os jogos de mesa ou de tabuleiro (Monopólio e Dungeons & Dragons), os jogos de guerra (War e outros), os jogos esportivos (existem versões digitais de todos os jogos populares na América, do golfe ao futebol americano e inglês). Essas considerações, no entanto, parecem se mostrar controversas, pois, ainda que de forma generalista e sem especificações de determinados video games, nem todos os jogos virtuais podem ser considerados remediações de outras mídias. Um jogo de guerra, por exemplo, como Call of Duty, ou um jogo de guerrilha urbana, como Counter-Strike, seriam remediações de que mídia? Por essa perspectiva, o conceito de remediação encontra alguns obstáculos. Não obstante, Bolter e Grusin trabalham com outros elementos que, sim, são participantes dentro do universo do video game, como a imediatidade, a hipermediatidade e a imersão.

Para relembrar, a hipótese apresentada neste trabalho é de que os video games funcionam como uma nova forma de drama, de encenação, permitindo ao espectador passar de plateia a ator no ato de simular a história do jogo, tomando para si o papel do herói do ambiente virtual em que está imerso, especialmente os video games do tipo role playing (tanto em primeira como em terceira pessoa).

Desde sua origem no final da década de 1950, os jogos de video game de 2011 pouco se assemelham aos jogos dessa época. A tecnologia permitiu o aprimoramento da inteligência artificial, o que possibilitou a inserção de personagens não-jogáveis mais complexos e a utilização de programação em 3D, garantindo, assim, imagens gráficas de cenários, de batalhas e dos próprios personagens do ângulo que se desejar e com excelente resolução, bem como o desenvolvimento da engine.

Muita coisa mudou nesses sessenta anos e o video game passou por uma série de modificações, sendo atualmente considerado obra de arte e responsável por grandes investimentos financeiros na área de programação e de engenharia. Considerando essas transformações, não se pode deixar de observar nessa mudança um reflexo da evolução tecnológica vivida pela humanidade nos últimos trinta anos: telefones celulares, computadores portáteis e extremamente leves, tecnologia bluetooth, entre outros.  Como essa tecnologia é, de fato, uma extensão do homem, não se pode negar o entrelaçamento de tudo o que ela permitiu que se produzisse a partir dela.

Em Understanding Media, McLuhan (1994) dedica um capítulo aos jogos como mídia de extensão do homem. No capítulo em questão, assim como em toda obra, o autor realça a importância de se perceber as mensagens transmitidas através das mídias e que implicação elas têm de fato. Em relação aos jogos, embora se refira mais claramente a jogos clássicos como pôquer, basquete e futebol (o americano) e os jogos de video game tinham apenas alguns anos de idade quando o texto foi publicado pelo primeira vez, McLuhan faz fundamentais afirmações sobre o seu papel e o que ele representa para a humanidade:
Games are popular art, collective, social reactions to the main drive or action of any culture. Games, like institutions, are extensions of social man and of the body politic, as technologies are extensions of the animal organism. (…) As extensions of the popular response to the workaday stress, games become faithful models of a culture. (McLUHAN, 1994, p. 235)

Games are dramatic models of our psychological lives providing release of particular tensions. They are collective and popular art forms with strict conventions. (McLUHAN, 1994, p. 237) 

Like our vernacular tongues, all games are media of interpersonal communication, and they could have neither existence nor meaning except as extensions of our immediate inner lives. (McLUHAN, 1994, p. 238) 

The games of a people reveal a great deal about them. Games are a sort of artificial paradise like Disneyland, or some Utopian vision by which we interpret and complete the meaning of our daily lives. In games we devise means of nonspecialized participation in the larger drama of our time. (McLUHAN, 1994, p. 239)

McLuhan não fez reflexões sobre video games, mas aos jogos em geral como extensões do homem e, nesse sentido, suas colocações são aplicáveis aos jogos virtuais. O autor não duvida de que jogos são uma nova forma de arte, assim como o cinema foi no início do século XX, e de que representam modelos dramáticos, tanto da parte psicológica do ser humano como da comunicação interpessoal. Os jogos de video game vão além da simples representação, eles são a simulação da experiência na qual o jogador se vê imerso; nesse sentido, a experiência do video game é construída, de fato, pela interação do jogador, a posteriori. Conforme afirma Aarseth (2001[5]),
Simulation is the hermeneutic Other of narratives; the alternative mode of discourse, bottom up and emergent where stories are top-down and preplanned. In simulations, knowledge and experience is created by the players’ actions and strategies, rather than recreated by a writer or moviemaker.

Dovey e Kennedy (2009) propõem em Game Cultures: computer games as new media uma metodologia analítica que vá um pouco além da abordagem tradicional e estruturalista dos estudiosos de jogos virtuais – os ludologistas – e abranja o reconhecimento desses jogos como nova mídia e como se dá o processo de sua mediação através das culturas. Enquanto estes estudos preocupavam-se basicamente em identificar elementos em comum entre o video game e as narrativas, os estudos mais atuais percebem no video game a materialização dos seguintes aspectos: 1) a natureza da sociedade é tecnologicamente determinada; 2) os usuários são interativos; 3) a experiência é o objetivo; 4) imersão ao invés de observação; 5) simulação no lugar de representação; 6) a mídia é onipresente e não centralizada, ou seja, está por todas as partes; 7) o usuário é participante/co-criador e não somente consumidor; e 8) o jogo não a obra.

Como mídia, os jogos foram analisados como espaço apresentado ao jogador pelos Estudos de Novas Mídias (DOVEY; KENNEDY, 2009). Nesse sentido, a experiência do jogo vai muito além de apenas atingir seu final ou de derrotar inimigos, ela se encontra no ato de exploração dos universos virtuais e na manipulação de um personagem dentro do jogo pelo jogador, externo a ele. Ainda segundo Dovey e Kennedy (2009, p. 94),
the computer game is argued to remediate the kinds of pleasure offered by boys’ own adventure stories, as well as offering experiences of mastery of virtual spaces at a time when access to real spaces (particularly in urban societies) is increasingly limited.  

Entretanto, exploração dos espaços virtuais renderizados pelo sistema, seja num console seja num computador não é a única recompensa obtida pelo jogador. Embora se conteste a profundidade de caracterização das personagens em video games, as escolhas do jogador estabelecem, de certa forma, a complexidade psicológica dos avatares[6], construindo no decorrer da aventura o chamado inner self desses personagens. Levando isso em conta, é importante para o estudo nas novas mídias a pesquisa com os jogos de video game, pois, de acordo com McLuhan (1994, p. 242), 

the form of any game is of first importance. Game theory, like information theory, has ignored this aspect of game and information movement. Both theories have dealt with the information content of systems, and have observed the "noise" and "deception" factors that divert data. This is like approaching a painting or a musical composition from the point of view of its content. In other words, it is guaranteed to miss the central structural core of the experience. For as it is the pattern of a game that gives it relevance to our inner lives, and not who is playing nor the outcome of the game, so it is with information movement.

Este trecho deixa patente a relevância de compreender de fato o valor que os jogos de video game têm para os jogadores e interessados. Entender a motivação que os leva a passar horas em frente a um computador ou televisão (usando outros consoles – Playstation, Wii, Xbox entre outros) e que tipo de experiência é obtida da interação é o que garante a continuidade e a utilização cada vez maior de desse tipo de jogo.

Com a tecnologia, o homem pode se isolar, e, por conseguinte, teve ofertada a ele outras formas de interação. Os jogos virtuais para múltiplos jogadores (Multiplayer e Massively Multiplayer Online Games) são tão acessados quanto qualquer rede social (Twitter, Facebook, Orkut, Google+) e exigem dos jogadores verdadeira dedicação (tempo, dinheiro, raciocínio), pois a criação de avatares e seu aperfeiçoamento garantem o sucesso das personagens no ambiente virtual.

Assim, é preciso que se aceite a posição dos jogos de video game como extensões do individuo ou do coletivo e que seu efeito nesse indivíduo ou grupo vai acabar por reconfigurar toda uma sociedade (MCLUHAN, 1994, p. 243). Para a autora deste ensaio, assim como para McLuhan, está evidente que os jogos (incluídos, pela autora, nesse conjunto estão os de video game) são extensões da vida social das pessoas e que eles são mídias de comunicação.

Portanto, jogar está no limiar de apenas ocupar um corpo virtual que se observa em uma tela e de assumir este corpo como extensão do indivíduo. A escolha por um ou outro jogo deve ter certa importância, mas necessita de estudo: seria o enredo que chama a atenção dos jogadores (muitos não dão importância para isso)?; ou seria a excelência dos gráficos e capacidades possibilitadas pela tecnologia da engine (de fato, isso faz diferença entre um jogo e outro); ou, ainda, seria o fato de determinado jogo oferecer um maior nível de imersão ao jogador?

Estas respostas ainda não estão claras, mas é sabido que o gênero de Role Playing Virtual Game representa um dos gêneros de video game favoritos dos jogadores, pois permite que o jogador simule as experiências e atividades do jogo como se fosse a personagem e, ainda, permite que o jogador construa sua personagem como quiser (dentro de uma certa margem algorítmica). Outro elemento de importância significativa é a questão da rejogabilidade (ou replay value); aqui jaz um dos pontos de grande interesse nos Game Studies, quer dizer...qual a motivação para um jogador  rejogar um jogo novamente, um jogo já finalizado, já conhecido? Esse é um dos questionamentos que ainda permanece e que, de certa forma, conecta-se com o tema da simulação.
Em linhas gerais, simulação é

um sistema de representação que não tem nenhum referente real no mundo. Deriva da ciência da computação e da teoria crítica através do legado de Baudrillard. Em ciência da computação, simulação é capaz de prever o comportamento de sistemas complexos que não poderiam ser diretamente observados e é amplamente utilizada, junto com a teoria e a experimentação, como método para a reprodução de conhecimento. Baudrillard defendeu que 'signos' já não representam a realidade no mundo mas eles mesmos constituem o mundo. Jogos de computador unem estas duas vertentes de significado na medida em que eles graficamente representam ambientes que usualmente não existem no mundo e que são gerados pelos sistemas dinâmicos complexos da game engine (Dovey; Kennedy, 2009).

Partindo disso, pode-se teorizar que os video games, considerando sua não-referencialidade direta com a realidade, trabalham com um nível conceitual de real, uma espécie de constructo, sem referente imediato. O universo elaborado pelo jogo se torna o modelo de universo para o jogador e é este mundo que cria seus próprios signos, quebrando toda e qualquer fronteira; a simulação passa a ser a realidade, criando, assim, um mundo hiperreal em que não se pode diferenciar real e irreal, já que a arbitrariedade essencial da imagem criada, novamente, não  se refere nem a um significado nem a um significante conhecido.

Nesse sentido, o jogo permite a seus usuários a criação de ambientes, de personagens, de universos que iriam contra qualquer lei física ou biológica, assim como permite que o jogador realize, através de seu avatar, proezas impossíveis no mundo que se tem como referente do real (voar, lutar todas as artes marciais conhecidas, produzir encantamentos entre outras habilidades). Ademais, esse mesmo universo, ainda que produzido sobre leis regidas pela engine, consente aos usuários a quebra dessas mesmas leis (as trapaças). Dessa forma, as mesmas leis que regem o universo do jogo, regem as quebras dessas leis, pois a sua construção “deixa” brechas, dando ao jogador todo o poder de manipular o mundo a sua volta (mas com um certo limite de possibilidades). A partir da simulação, Baudrillard afirma que surge o simulacro, que seriam os signos produzidos por essa simulação, com o papel de transformar os leitores/plateia/jogadores em consumidores de valores simbólicos defendidos nesta simulação. Aqui, essa perspectiva não se aplica, pois a consideração defendida jaz na simulação, como alternativa de representação, considerando essa nova mídia, os jogos virtuais.

Assim, a simulação, não como caminho para o simulacro que leva para a alienação, mas como caminho para se tornar autor e ator de sua história enquanto ela ocorre, permite ao usuário, jogador, colocar-se no papel do outro, vivenciar situações não referenciáveis em parte alguma do mundo físico que se conhece. Simular, finalizando, está para o adulto como o faz-de-conta está para a criança; o sentido lúdico, do jogar simulando o que quer que seja, de se ver representado graficamente por um avatar virtual dá ao usuário a liberdade que só a própria simulação, sua essência sem referencial, permite. O jogador, assim, escapa a sua realidade imediata para uma hiperrealidade autoconstruída no ato do próprio jogo, tendo em suas mãos as ações das personagens sobre a sua tutela e que, virtualmente, o representam.

Nesse jogo entre ação/personagem/ator (e quem sabe, jogador), estabelece-se uma das relações fundamentais tanto na realização do drama como do video game. Em outras palavras, sem personagens/atores não há desenvolvimento do jogo dramático, e é justamente pelo papel por este elemento desempenhado que a história passa a ser de conhecimento da audiência. Da mesma forma, sem personagem no video game, sem o avatar do jogador, não existe jogo, pois a essa inserção, a esse role playing liga-se a imersão, podendo gerar, eventualmente, identificação com o jogador ou não, uma vez que o avatar simula ações, representando os comandos executados pelo usuário.
Como define Décio de Almeida Prado (1985, p. 87)
A ação é não só o meio mais poderoso e constante do teatro através dos tempos, como o único que o realismo considera legítimo. Drama, em grego, significa etimologicamente ação: se quisermos delinear dramaticamente a personagem devemos ater-nos, pois, à esfera do comportamento, à psicologia extrospectiva e não introspectiva. Não importa, por exemplo, que o ator sinta dentro de si, viva, a paixão que lhe cabe interpretar; é preciso que a interprete de fato, isto é, que a exteriorize, pelas inflexões, por um certo timbre de voz, pela maneira de andar e de olhar, pela expressão corporal etc.

Assim, no teatro, a personagem, representada pelo ator, pode receber diversas representações, conforme os atores que a representarem no palco, o mesmo ocorre no video game, pois (com exceção das personagens em RPGs, em que o jogador tem a possibilidade de customizá-los) cada diferente jogador incutirá características individuais não recorrentes em gameplays de diferentes jogadores.

O avatar, em analogia à personagem nos modos diegético e dramático, dá vida aos comandos enviados pelo jogador ao sistema; é através dele que o conjunto de teclas, botões e combos é representado e, finalmente, simulado. A identificação que ocorre entre jogador e avatar é tamanha que existe considerável preocupação com a “saúde” do avatar, pois, deixando que ele morra ou seja morto, é permitir que o jogador deixe-se morrer ou seja morto em sua realização como identidade virtual. Não obstante, há jogos em que não se tem personagens ou avatares representando os jogadores, nem por isso a imersão e o agenciamento são inferiores ou deixam de ocorrer, restando pensar, então, como tais elementos considerando um sistema simulatório em que os traços que concorrem nesse sentido são outros.


Referências

AARSETH, Esper. Computer Game Studies, Year One. In: Game Studies, v. 1, n. 1, jul. 2001. Disponível no sítio <http://www.gamestudies.org>. Acesso em: 30 de maio 2011.
BARTON, Matt. The History of Computer Role-Playing Games Part 1: the early years (1980-1983). 2007. Disponível no sítio <http://gamasutra.com/features/20070223a/barton_pfv.htm.>. Acessado em: 26 de maio de 2010.
BARTON, Matt. The History of Computer Role-Playing Games Part 2: the golden age (1985-1993). 2007. Disponível no sítio <http://www.gamasutra.com/features/20070223b/barton_01.shtml>. Acessado em: 26 de maio de 2010.
BARTON, Matt. The History of Computer Role-Playing Games Part 3: the platinum and modern ages (1994-2004). Disponível no sítio <http://www.gamasutra.com/view/feature/1571/the_history_of_computer_.php>. Acessado em: 26 de maio de 2010.
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding media. Massachusetts: MIT, 1999.
CHATEAU, Jean. O Jogo e a Criança. São Paulo: Summus, 1987.
DOVEY, Jon; KENNEDY, Helen W.. Game Cultures: computer games as new media. Berkshire: Open University, 2009.
ESSLIN, Martin. Uma Anatomia do Drama. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.
LORENZ, Edward N.. The Essence of Chaos. Seattle: University of Washington, 1995.
MCLUHAN, Marshall. Games: The Extensions of Man. In: Understanding Media: the extensions of man. Massachusetts: The MIT Press, 1994.
PRADO, Décio de Almeida Prado. A Personagem de Teatro. In: CANDIDO, Antonio (Org.). A Personagem de Ficção. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1981. p. 81-102.


[1] Disponível em formato digital (pdf) em: <http://jnsilva.ludicum.org/Huizinga_HomoLudens.pdf>.
[2] Um estilo de representação visual cujo propósito é fazer com que o espectador esqueça a presença da mídia (tela de pintura, filme fotográfico, cinema e outros) e acredite que está na presença dos objetos representados.
[3] Um estilo de representação visual cujo propósito é lembrar ao espectador da existência da mídia.
[4] Tradução da autora.
[5] Texto online – html sem paginação.
[6]   As personagens gráficas em jogo que representam o jogador ou as ações deste.