terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Devir-mulher: uma análise rizomática na construção contemporânea do desenho como obra de arte


“O que é desenhar? Como se chega a isso? É a ação de abrir uma passagem através de um muro de ferro invisível, que parece se encontrar entre o que se sente e o que se pode. Como se deve atravessar esse muro, pois de nada serve golpeá-lo fortemente; deve-se minar esse muro e atravessá-lo com o auxílio de uma lima, lentamente e com paciência, a meu ver.”
Antonin Artaud (8 de setembro de 1888)


"Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos intercambiantes. A pergunta 'o que você devém?' é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos."
Gilles Deleuze (1998)

No capítulo “Literatura e Vida” de Crítica e Clínica, Gilles Deleuze diz que o ato de escrever é um “jamais pronto” e estabelece a literatura “sempre como um devir”, uma forma “sempre inacabada”, “em via de fazer-se” e que “extravasa qualquer matéria vivida ou visível” (DELEUZE, 1997, p.11). Artes diferentes, meios diferentes, mensagens diferentes, mas ainda assim essas mesmas considerações de Deleuze podem ser transpostas para o desenho, também inseparável do devir e ainda do por vir.

A arte contemporânea, saturada pelo poderes da mídia, entranhando suas garras por todos os níveis sociais, quebra, assim, com o sistema de signos em uma perspectiva cartesiana e positivista e inaugura a era do simulacro. Assim, na era em que se tem o apagamento da representação, pois se evidencia a impossibilidade de tal tentativa, especialmente na linguagem (deixando sempre um resto de significado indecifrável), o simulacro é tudo o que resta. Dessa forma, não mais o desejo de imediatidade, de referência direta e absoluta com a realidade, o devir apresenta-se também como um simulacro.

Em um de seus mais conhecidos textos, Simulacros e Simulação, Jean Baudrillard retoma as questões envolvendo as ordens do simulacro, já trabalhado anteriormente em Symbolic Exchange and Death, e “estilhaça” ainda mais qualquer possibilidade de real na sociedade contemporânea tecnológica. Partindo da alegoria do mapa que representava tão bem o país em questão que acabou por ter as mesmas dimensões do plano concreto, Baudrillard destrói inclusive esta alegoria de busca pelo real, pois só há hoje a impossibilidade dela, é o simulacro (e não mais a representação) que tem espaço no hoje e é ele que precede o próprio real.

Mas é quase no final do texto, no capítulo Simulacros e Ficção Científica, que o autor retoma as três categorias (ou três ordens) de simulacros da seguinte forma:

Três categorias de simulacros:
- simulacros naturais, naturalistas, baseados na imagem, na imitação e no fingimento, harmoniosos, optimistas e que visam a restituição ou a instituição ideal de uma narutreza à imagem de Deus,
- simulacros produtivos, produtivistas, baseados na energia, na força, na sua materialização pela máquina e em todo o sistema de produção – objectivo prometiano de uma mundialização e de uma expansão contínua, de uma liberdade de energia indefinida (o desejo faz parte das utopias relativas a esta categoria de simulacros),
- simulacros de simulação, baseados na informação, no modelo, no jogo cibernético – operacionalidade total, hiperrealidade, objectivo de controle total.
À primeira categoria corresponde o imaginário da utopia. À segunda a ficção científica propriamente dita. À terceira corresponde – haverá ainda um imaginário que responde a esta categoria? A resposta provável é que o bom velho imaginário da ficção científica morreu e que alguma outra coisa está a surgir (e não só no romanesco, também na teoria). (BAUDRILLARD, 1991, p.151)

Assim, utilizar os conceitos de Deleuze em uma desesperada tentativa de se teorizar sobre a arte de desenhar, especialmente quando essa arte não se insere naquilo considerado convencional é uma empreitada verdadeira de se estabelecer, mesmo que minimamente, as forças que se entrebatem dentro do indivíduo no momento de devir. Assim como à “função fabuladora inventar um povo e não se escreve com as próprias lembranças” (DELEUZE, 1997, p.14) compete também a imaginação, dessa vez a do desenhista, inventar uma mulher, um simulacro de mulher, sem referencial preciso, mas compartilhadora de todas as generalidades que compõem todas as mulheres factuais.

É na busca por esse devir-mulher que este ensaio pretende apresentar notas, não mais que notas sobre uma obra específica, integrante de um conjunto triádico de construções de um simulacro de mulher do artista gaúcho Evandro Mesquita Lucas. Formado em Artes Plásticas pela UERGS, Mesquita desenvolve trabalhos na área de criação artística para revistas em quadrinho, inclusive com projeto de título próprio ainda a ser lançado (a princípio a HQ se chamará The Monkey’s Paw), já participou de exposições (Exposição Curto-Circuito na Galeria de Arte Loíde Schwambach com apoio da FUNDARTE) ao lado de outros artistas da cena atual. Em seus desenhos[1], Mesquita explora a quebra com os paradigmas de representação do real, caminhando em direção a uma proposta de fuga, de devaneio da criação, como nos dois exemplos a seguir:

Figura 1: O Cramulhão[2]


Figura 2: Possíveis efeitos colaterais

Dois exemplos que demonstram a força criadora do artista, mas que de forma alguma chegam a “fechar” o restante da produção em um mesmo ciclo. Observa-se, aqui, a existência de linhas de fuga, pois não se defende a postura dicotômica entre o que é e o que parece, ou o que deveria parecer e o que de fato é, quebrando assim as disjunções pré-estabelecidas, ainda mais que os possíveis referenciais dessas obras não são diretamente localizáveis no mundo dito real.

A obra específica de Mesquita selecionada para esse ensaio não permite descrição, é necessária a visão individual para consideração de sua potência. No desenho, encontra-se a seguinte descrição: “Não consigo pensar em um título para esse. Que obra! Quando terminei, comparei com os anteriores e tive vontade de refazê-los todos. Preocupei-me com cada detalhe de forma mais angustiante que o normal. O fundo fiz com minúcia para que tudo ficasse concreto, para que os traços se completassem realmente. Porém, preciso melhorar ainda um pouco da perspectiva e a relação com o espaço. E outros problemas, já que eu comecei a fazer ele em Outubro do ano passado, larguei de mão e só terminei semana passada, por isso está um pouco irregular, com diferentes grafismos inseridos. O lado bom é que, ainda assim, ficou congruente. É um delírio só isso aí. Bem, as citações são as mesmas de sempre, daquele certo livro, nem é necessário explicar. Espero que alguém compreenda.”. Em mãos da descrição do artista, convém contemplar a obra.

Figura 3: “Não consigo pensar em um título para esse”

Assim como o simulacro, o devir também possui existência própria; ele não se encontra em analogia com o mundo onírico ou imaginário, ele é o próprio real nessa construção. Dessa forma, a confluência entre a mulher que é e a que se insculpe no papel pela linha assistemática e difusa, não é nem a mulher factual, nem a mulher representação, mas um outro real de mulher que vale por si mesmo, um novo signo, construído pelo movimento do simulacro.
É somente com a observação da obra propriamente que se pode compreender qualquer reflexão que se proponha. Fica patente que a construção do artista não se limita nem às fronteiras do papel, pois se vê claramente a continuidade que a margem exige suprimir. É o desenho rizoma em sua mais alta intensidade e sem desconcerto é possível agora citar Deleuze (1995) em Mil Platôs:

Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza, ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo... Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades.
           
Embora o conceito de rizoma de Deleuze refira-se, em última análise, à tentativa de um novo paradigma de pensamento e conhecimento, tentando assim, entre outras coisas, romper com a hegemonia da genealogia dos colonizadores e da visão cartesiana ocidental, o conceito pode ser aplicado igualmente às artes, em busca não mais da representação como função de imediatidade entre o representado e o real, mas um sistema a parte que vale por si só. Dessa forma, “o rizoma é portanto um antimétodo que parece tudo autorizar” (ZOURABICHVILI, 2004).

Espera-se que as notas que aqui foram apresentadas tenham alcançado minimamente seu objetivo, delimitar o não-delimitável que é o próprio devir e não na literatura, mas nas artes plásticas. Sumariamente, o desenho de Mesquita é também um devir-mulher, em oposição à arte de representação que firma-se sobre a égide de uma forma de expressão dominante (por isso masculina), pois forma inacabada, não-delimitada, mas também não fugidia; é um devir-mulher que se encontra em si mesmo, no limiar da névoa e por isso evanescente: “Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma mulher (...)”.       


REFERÊNCIAS

ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p.257-290.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d'Água, 1991.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. p. 184.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: 34, 1997. p.11-16.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. 1 v. p. 11-37.
ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p.128.




[1] Algumas obras do artista encontram-se disponíveis para visualização na seguinte página da web: <http://www.flickr.com/photos/evandromesquita/with/3881369445/>.
[2]  Descrição do artista: “Estava lendo "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Barbaridade. Logo de cara, esse trecho que segue levou-me ao delírio: Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser - se viu - ; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram - era o demo.”

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