domingo, 27 de novembro de 2011

O Video Game como Transposição do Desejo de Representação para o de Simulação*


O homem contemporâneo encontra-se irremediavelmente marcado, modificado e, até certo ponto, determinado pela tecnologia que o cerca e, em contrapartida, também a marca, modifica e determina. A busca pelo racionalismo demonstra, nas culturas ocidentais, uma especialização dos meios de comunicação no sentido de que essas mídias correspondam às necessidades que surgem justamente por essa mesma especialização. Os video games correspondem, no paradigma tecnológico atual, a uma mídia com cruzamentos em outros níveis culturais, tanto em sua extensão para outras mídias e vice-versa como nos meios de produção e as relações de poder nesse sistema.

Nesse sentido, o video game encontra-se situado no limiar de algumas, senão várias áreas de conhecimento, a saber, Filosofia, Antropologia, Psicologia, Teoria da Literatura, Estudos de Jogo e, obviamente, Engenharia e Ciência da Computação e pensar nesse suporte considerando apenas uma dessas áreas não só limita as reflexões possíveis como também circunscreve o video game a apenas um paradigma de pensamento.

Não há dúvida de que os video games compartilhem caraterísticas poéticas comuns aos modos diegéticos e miméticos, a saber, ações encadeadas, um tempo, um espaço, personagens, narração e diálogo, sem mencionar o grande potencial em storytelling observável em diferentes gêneros de video games. E este detalhe não deve ser, em nenhum momento, esquecido. Entretanto, concorrem na realização de toda a atividade em que se circunscreve o gameplay fatores que vão muito além das características diegéticas e miméticas relacionadas anteriormente; o video game encontra-se no limiar disso, partindo para um caminho de modo de simulação, no qual o jogador deixa de ser leitor/espectador e passa a ser ator/criador.

Assim como outro elemento cultural, o video game corresponde, até certo ponto, a uma das linhas de confluência de uma série de mídias e produtos midiáticos e tecnológicos e por esse motivo, poder ser pensado como participante de um sistema dinâmico, em constante alteração. Dessa forma e justamente porque se insere dentro de um sistema maior, o video game não pode ser pensado de forma isolada, mas, sim, pelo pensamento em rede, possibilitando, então, uma compreensão além da formalista, indo para o campo psicológico e filosófico.

Pensando dessa forma, é necessário que se entenda, mesmo que de forma básica, como essa concepção de videogame, como parte de um sistema dinâmico maior, se apresenta. Em linhas gerais, o mundo está organizado por sistemas, alguns naturais outros culturais (a discussão sobre essa dicotomia é extensa e não necessária nesse trabalho, mas pode oferecer diversos subsídios para que se possa melhor entender o funcionamento de alguns elementos naturais e culturais), baseando-se em elementos que aparentemente, mas só aparentemente, parecem aleatórios. De acordo Edward N. Lorenz (1995), as condições iniciais estão no centro de investigação de experimentos dos mais diversos que exploram os sistemas que compõem o planeta, tanto os lineares como os não-lineares. No entanto, as condições iniciais de um sistema podem representar, de fato, em um estudo as condições iniciais de um evento, mas, ao mesmo tempo, essas mesmas e exatas condições podem representar os elementos do decurso de outro evento bem como os elementos finais de um terceiro.

Expostos alguns pontos sobre a relação de elementos dentro de um sistema, pode-se pensar, a partir disso, no video game inserido, então, dentro do sistema dinâmico dos produtos tecnológicos. Ele obedece (não há dúvidas disso) a necessidades mercadológicas, e seu aperfeiçoamento exige computadores e consoles cada vez mais especializados e poderosos; do contrário, não haveria “evolução”. Assim considerado, é possível observar como o video game não se coloca como objeto independente (acredito que não exista tal produto), mas, sim, como uma das linhas que formam a rede tecnológica em que se insere a comunidade ocidental contemporânea.

Mas não somente de sistemas e de video game como produto cultural fez-se esse artigo. Ele se insere também num sistema maior, na tentativa de pensar sobre algumas das questões que chamam atenção de diversos pesquisadores de jogos, especialmente os narratologistas, como os elementos que o aproximam tanto da narrativa como do drama (entenda-se drama como ato de encenar).

Sendo assim, parte-se da hipótese de que alguns gêneros de video game representam uma nova possibilidade de recepção da obra de arte – obra de arte, pois o video game já tem garantido esse estatuto (quer algumas pessoas gostem ou não) –, um salto dos modos diegético e dramático para o modo de simulação operacionalizado pela construção representativa de imagens e sons através da mídia propriamente.

É preciso, então, pensar nesse desejo, interesse em representar, encenar, fazer-de-conta que parece tão apaixonante aos olhos das crianças, mas que, na verdade, permanece no humano mesmo em sua idade adulta. O ato de representar, de encenar a vida, nasce junto aos rituais mais primitivos humanos, os rituais de representação das colheitas, da passagem de uma estação do ano para outra, dos eventos cósmicos, das oferendas aos deuses, etc. O ritual, o culto, então, funcionou por muito tempo como a base para a encenação, para o drama como representação da vida. Como afirma Huizinga (2000), “o culto é, portanto, um espetáculo, uma representação dramática, uma figuração imaginária de uma realidade desejada”. Nesse sentido, o culto servia como instrumento, ao lado da criação mítica, para dar forma à consciência que a humanidade tinha do mundo que a cercava. Mais além, Huizinga (2000[1]) defende que, mais do que o ritual,
(…) o que é importante é o próprio jogo. O ritual não difere de maneira essencial das formas superiores dos jogos infantis ou animais, e dificilmente poderia afirmar-se que estas duas últimas formas tenham sua origem numa tentativa de expressão de qualquer emoção cósmica. (…) Diríamos, então, que, na sociedade primitiva, verifica-se a presença do jogo, tal como nas crianças e nos animais, e que, desde a origem, nele se verificam todas as características lúdicas: ordem, tensão, movimento, mudança, solenidade, ritmo, entusiasmo. Só em fase mais tardia da sociedade o jogo se encontra associado à expressão de alguma coisa, nomeadamente aquilo a que podemos chamar “vida” ou “natureza”.

De acordo com Martin Esslin (1978, p.13), o drama funciona, ao mesmo tempo, como manifestações do instinto de jogo, do ritual e do espetáculo e acrescenta: “nenhuma dessas atividades pode ser considerada como drama em seu sentido adequado, porém as linhas divisórias entre elas e o drama são, na verdade, extremamente fluidas (...)”.

Então, o drama, a representação e a encenação são rituais baseados em regras que regem o jogo que aí se desenvolve. Aqueles que participam dessa encenação dão vida à abstração que jaz na consciência e tornam o real imaginado em simulação daquilo que acreditam ser a verdade; esses seres responsáveis por tal encenação são os atores e sem eles não há ação. Mais além, Esslin (1978, p.16) afirma que o “drama é ação mimética, ação que imita ou representa comportamentos humanos. O que é crucial é a ênfase sobre a ação”.

Relacionada ao ato de encenar está a necessidade humana do faz-de-conta, da simulação, de fingir ter o que não se tem. Alguns autores consideram que essas brincadeiras de faz-de-conta, para as crianças, podem funcionar como instrumento de treinamento para a vida quando adulta, como um exercício de vida anterior ao evento verídico. Chateau (1987, p.29) explica que o jogo tem para a criança a mesma função que o trabalho tem para o adulto: “Como o adulto se sente forte por suas obras, a criança sente-se crescer com suas proezas lúdicas”. O jogo, então, está no cerne da construção do indivíduo. No entanto, não se pode afirmar que o jogo, o instinto de jogo, seja inato no ser humano, mas que este faz parte da essência humana em seu desenvolvimento é inegável.

O drama, no entanto, diferentemente do video game, não é uma mídia, assim como a fotografia, a televisão, o cinema o são, ainda que trabalhe com os elementos de imersão e de  realidade representada. De acordo com Bolter e Grusin (1999), “as novas mídias remodelam formas midiáticas anteriores e, ao lado da imediatidade[2] e da hipermediatidade[3], a remediação é um dos três traços da nossa genealogia das novas mídias”[4].

Pela proposta dos autores, os video games seriam remediações de jogos anteriores, como os jogos de mesa ou de tabuleiro (Monopólio e Dungeons & Dragons), os jogos de guerra (War e outros), os jogos esportivos (existem versões digitais de todos os jogos populares na América, do golfe ao futebol americano e inglês). Essas considerações, no entanto, parecem se mostrar controversas, pois, ainda que de forma generalista e sem especificações de determinados video games, nem todos os jogos virtuais podem ser considerados remediações de outras mídias. Um jogo de guerra, por exemplo, como Call of Duty, ou um jogo de guerrilha urbana, como Counter-Strike, seriam remediações de que mídia? Por essa perspectiva, o conceito de remediação encontra alguns obstáculos. Não obstante, Bolter e Grusin trabalham com outros elementos que, sim, são participantes dentro do universo do video game, como a imediatidade, a hipermediatidade e a imersão.

Para relembrar, a hipótese apresentada neste trabalho é de que os video games funcionam como uma nova forma de drama, de encenação, permitindo ao espectador passar de plateia a ator no ato de simular a história do jogo, tomando para si o papel do herói do ambiente virtual em que está imerso, especialmente os video games do tipo role playing (tanto em primeira como em terceira pessoa).

Desde sua origem no final da década de 1950, os jogos de video game de 2011 pouco se assemelham aos jogos dessa época. A tecnologia permitiu o aprimoramento da inteligência artificial, o que possibilitou a inserção de personagens não-jogáveis mais complexos e a utilização de programação em 3D, garantindo, assim, imagens gráficas de cenários, de batalhas e dos próprios personagens do ângulo que se desejar e com excelente resolução, bem como o desenvolvimento da engine.

Muita coisa mudou nesses sessenta anos e o video game passou por uma série de modificações, sendo atualmente considerado obra de arte e responsável por grandes investimentos financeiros na área de programação e de engenharia. Considerando essas transformações, não se pode deixar de observar nessa mudança um reflexo da evolução tecnológica vivida pela humanidade nos últimos trinta anos: telefones celulares, computadores portáteis e extremamente leves, tecnologia bluetooth, entre outros.  Como essa tecnologia é, de fato, uma extensão do homem, não se pode negar o entrelaçamento de tudo o que ela permitiu que se produzisse a partir dela.

Em Understanding Media, McLuhan (1994) dedica um capítulo aos jogos como mídia de extensão do homem. No capítulo em questão, assim como em toda obra, o autor realça a importância de se perceber as mensagens transmitidas através das mídias e que implicação elas têm de fato. Em relação aos jogos, embora se refira mais claramente a jogos clássicos como pôquer, basquete e futebol (o americano) e os jogos de video game tinham apenas alguns anos de idade quando o texto foi publicado pelo primeira vez, McLuhan faz fundamentais afirmações sobre o seu papel e o que ele representa para a humanidade:
Games are popular art, collective, social reactions to the main drive or action of any culture. Games, like institutions, are extensions of social man and of the body politic, as technologies are extensions of the animal organism. (…) As extensions of the popular response to the workaday stress, games become faithful models of a culture. (McLUHAN, 1994, p. 235)

Games are dramatic models of our psychological lives providing release of particular tensions. They are collective and popular art forms with strict conventions. (McLUHAN, 1994, p. 237) 

Like our vernacular tongues, all games are media of interpersonal communication, and they could have neither existence nor meaning except as extensions of our immediate inner lives. (McLUHAN, 1994, p. 238) 

The games of a people reveal a great deal about them. Games are a sort of artificial paradise like Disneyland, or some Utopian vision by which we interpret and complete the meaning of our daily lives. In games we devise means of nonspecialized participation in the larger drama of our time. (McLUHAN, 1994, p. 239)

McLuhan não fez reflexões sobre video games, mas aos jogos em geral como extensões do homem e, nesse sentido, suas colocações são aplicáveis aos jogos virtuais. O autor não duvida de que jogos são uma nova forma de arte, assim como o cinema foi no início do século XX, e de que representam modelos dramáticos, tanto da parte psicológica do ser humano como da comunicação interpessoal. Os jogos de video game vão além da simples representação, eles são a simulação da experiência na qual o jogador se vê imerso; nesse sentido, a experiência do video game é construída, de fato, pela interação do jogador, a posteriori. Conforme afirma Aarseth (2001[5]),
Simulation is the hermeneutic Other of narratives; the alternative mode of discourse, bottom up and emergent where stories are top-down and preplanned. In simulations, knowledge and experience is created by the players’ actions and strategies, rather than recreated by a writer or moviemaker.

Dovey e Kennedy (2009) propõem em Game Cultures: computer games as new media uma metodologia analítica que vá um pouco além da abordagem tradicional e estruturalista dos estudiosos de jogos virtuais – os ludologistas – e abranja o reconhecimento desses jogos como nova mídia e como se dá o processo de sua mediação através das culturas. Enquanto estes estudos preocupavam-se basicamente em identificar elementos em comum entre o video game e as narrativas, os estudos mais atuais percebem no video game a materialização dos seguintes aspectos: 1) a natureza da sociedade é tecnologicamente determinada; 2) os usuários são interativos; 3) a experiência é o objetivo; 4) imersão ao invés de observação; 5) simulação no lugar de representação; 6) a mídia é onipresente e não centralizada, ou seja, está por todas as partes; 7) o usuário é participante/co-criador e não somente consumidor; e 8) o jogo não a obra.

Como mídia, os jogos foram analisados como espaço apresentado ao jogador pelos Estudos de Novas Mídias (DOVEY; KENNEDY, 2009). Nesse sentido, a experiência do jogo vai muito além de apenas atingir seu final ou de derrotar inimigos, ela se encontra no ato de exploração dos universos virtuais e na manipulação de um personagem dentro do jogo pelo jogador, externo a ele. Ainda segundo Dovey e Kennedy (2009, p. 94),
the computer game is argued to remediate the kinds of pleasure offered by boys’ own adventure stories, as well as offering experiences of mastery of virtual spaces at a time when access to real spaces (particularly in urban societies) is increasingly limited.  

Entretanto, exploração dos espaços virtuais renderizados pelo sistema, seja num console seja num computador não é a única recompensa obtida pelo jogador. Embora se conteste a profundidade de caracterização das personagens em video games, as escolhas do jogador estabelecem, de certa forma, a complexidade psicológica dos avatares[6], construindo no decorrer da aventura o chamado inner self desses personagens. Levando isso em conta, é importante para o estudo nas novas mídias a pesquisa com os jogos de video game, pois, de acordo com McLuhan (1994, p. 242), 

the form of any game is of first importance. Game theory, like information theory, has ignored this aspect of game and information movement. Both theories have dealt with the information content of systems, and have observed the "noise" and "deception" factors that divert data. This is like approaching a painting or a musical composition from the point of view of its content. In other words, it is guaranteed to miss the central structural core of the experience. For as it is the pattern of a game that gives it relevance to our inner lives, and not who is playing nor the outcome of the game, so it is with information movement.

Este trecho deixa patente a relevância de compreender de fato o valor que os jogos de video game têm para os jogadores e interessados. Entender a motivação que os leva a passar horas em frente a um computador ou televisão (usando outros consoles – Playstation, Wii, Xbox entre outros) e que tipo de experiência é obtida da interação é o que garante a continuidade e a utilização cada vez maior de desse tipo de jogo.

Com a tecnologia, o homem pode se isolar, e, por conseguinte, teve ofertada a ele outras formas de interação. Os jogos virtuais para múltiplos jogadores (Multiplayer e Massively Multiplayer Online Games) são tão acessados quanto qualquer rede social (Twitter, Facebook, Orkut, Google+) e exigem dos jogadores verdadeira dedicação (tempo, dinheiro, raciocínio), pois a criação de avatares e seu aperfeiçoamento garantem o sucesso das personagens no ambiente virtual.

Assim, é preciso que se aceite a posição dos jogos de video game como extensões do individuo ou do coletivo e que seu efeito nesse indivíduo ou grupo vai acabar por reconfigurar toda uma sociedade (MCLUHAN, 1994, p. 243). Para a autora deste ensaio, assim como para McLuhan, está evidente que os jogos (incluídos, pela autora, nesse conjunto estão os de video game) são extensões da vida social das pessoas e que eles são mídias de comunicação.

Portanto, jogar está no limiar de apenas ocupar um corpo virtual que se observa em uma tela e de assumir este corpo como extensão do indivíduo. A escolha por um ou outro jogo deve ter certa importância, mas necessita de estudo: seria o enredo que chama a atenção dos jogadores (muitos não dão importância para isso)?; ou seria a excelência dos gráficos e capacidades possibilitadas pela tecnologia da engine (de fato, isso faz diferença entre um jogo e outro); ou, ainda, seria o fato de determinado jogo oferecer um maior nível de imersão ao jogador?

Estas respostas ainda não estão claras, mas é sabido que o gênero de Role Playing Virtual Game representa um dos gêneros de video game favoritos dos jogadores, pois permite que o jogador simule as experiências e atividades do jogo como se fosse a personagem e, ainda, permite que o jogador construa sua personagem como quiser (dentro de uma certa margem algorítmica). Outro elemento de importância significativa é a questão da rejogabilidade (ou replay value); aqui jaz um dos pontos de grande interesse nos Game Studies, quer dizer...qual a motivação para um jogador  rejogar um jogo novamente, um jogo já finalizado, já conhecido? Esse é um dos questionamentos que ainda permanece e que, de certa forma, conecta-se com o tema da simulação.
Em linhas gerais, simulação é

um sistema de representação que não tem nenhum referente real no mundo. Deriva da ciência da computação e da teoria crítica através do legado de Baudrillard. Em ciência da computação, simulação é capaz de prever o comportamento de sistemas complexos que não poderiam ser diretamente observados e é amplamente utilizada, junto com a teoria e a experimentação, como método para a reprodução de conhecimento. Baudrillard defendeu que 'signos' já não representam a realidade no mundo mas eles mesmos constituem o mundo. Jogos de computador unem estas duas vertentes de significado na medida em que eles graficamente representam ambientes que usualmente não existem no mundo e que são gerados pelos sistemas dinâmicos complexos da game engine (Dovey; Kennedy, 2009).

Partindo disso, pode-se teorizar que os video games, considerando sua não-referencialidade direta com a realidade, trabalham com um nível conceitual de real, uma espécie de constructo, sem referente imediato. O universo elaborado pelo jogo se torna o modelo de universo para o jogador e é este mundo que cria seus próprios signos, quebrando toda e qualquer fronteira; a simulação passa a ser a realidade, criando, assim, um mundo hiperreal em que não se pode diferenciar real e irreal, já que a arbitrariedade essencial da imagem criada, novamente, não  se refere nem a um significado nem a um significante conhecido.

Nesse sentido, o jogo permite a seus usuários a criação de ambientes, de personagens, de universos que iriam contra qualquer lei física ou biológica, assim como permite que o jogador realize, através de seu avatar, proezas impossíveis no mundo que se tem como referente do real (voar, lutar todas as artes marciais conhecidas, produzir encantamentos entre outras habilidades). Ademais, esse mesmo universo, ainda que produzido sobre leis regidas pela engine, consente aos usuários a quebra dessas mesmas leis (as trapaças). Dessa forma, as mesmas leis que regem o universo do jogo, regem as quebras dessas leis, pois a sua construção “deixa” brechas, dando ao jogador todo o poder de manipular o mundo a sua volta (mas com um certo limite de possibilidades). A partir da simulação, Baudrillard afirma que surge o simulacro, que seriam os signos produzidos por essa simulação, com o papel de transformar os leitores/plateia/jogadores em consumidores de valores simbólicos defendidos nesta simulação. Aqui, essa perspectiva não se aplica, pois a consideração defendida jaz na simulação, como alternativa de representação, considerando essa nova mídia, os jogos virtuais.

Assim, a simulação, não como caminho para o simulacro que leva para a alienação, mas como caminho para se tornar autor e ator de sua história enquanto ela ocorre, permite ao usuário, jogador, colocar-se no papel do outro, vivenciar situações não referenciáveis em parte alguma do mundo físico que se conhece. Simular, finalizando, está para o adulto como o faz-de-conta está para a criança; o sentido lúdico, do jogar simulando o que quer que seja, de se ver representado graficamente por um avatar virtual dá ao usuário a liberdade que só a própria simulação, sua essência sem referencial, permite. O jogador, assim, escapa a sua realidade imediata para uma hiperrealidade autoconstruída no ato do próprio jogo, tendo em suas mãos as ações das personagens sobre a sua tutela e que, virtualmente, o representam.

Nesse jogo entre ação/personagem/ator (e quem sabe, jogador), estabelece-se uma das relações fundamentais tanto na realização do drama como do video game. Em outras palavras, sem personagens/atores não há desenvolvimento do jogo dramático, e é justamente pelo papel por este elemento desempenhado que a história passa a ser de conhecimento da audiência. Da mesma forma, sem personagem no video game, sem o avatar do jogador, não existe jogo, pois a essa inserção, a esse role playing liga-se a imersão, podendo gerar, eventualmente, identificação com o jogador ou não, uma vez que o avatar simula ações, representando os comandos executados pelo usuário.
Como define Décio de Almeida Prado (1985, p. 87)
A ação é não só o meio mais poderoso e constante do teatro através dos tempos, como o único que o realismo considera legítimo. Drama, em grego, significa etimologicamente ação: se quisermos delinear dramaticamente a personagem devemos ater-nos, pois, à esfera do comportamento, à psicologia extrospectiva e não introspectiva. Não importa, por exemplo, que o ator sinta dentro de si, viva, a paixão que lhe cabe interpretar; é preciso que a interprete de fato, isto é, que a exteriorize, pelas inflexões, por um certo timbre de voz, pela maneira de andar e de olhar, pela expressão corporal etc.

Assim, no teatro, a personagem, representada pelo ator, pode receber diversas representações, conforme os atores que a representarem no palco, o mesmo ocorre no video game, pois (com exceção das personagens em RPGs, em que o jogador tem a possibilidade de customizá-los) cada diferente jogador incutirá características individuais não recorrentes em gameplays de diferentes jogadores.

O avatar, em analogia à personagem nos modos diegético e dramático, dá vida aos comandos enviados pelo jogador ao sistema; é através dele que o conjunto de teclas, botões e combos é representado e, finalmente, simulado. A identificação que ocorre entre jogador e avatar é tamanha que existe considerável preocupação com a “saúde” do avatar, pois, deixando que ele morra ou seja morto, é permitir que o jogador deixe-se morrer ou seja morto em sua realização como identidade virtual. Não obstante, há jogos em que não se tem personagens ou avatares representando os jogadores, nem por isso a imersão e o agenciamento são inferiores ou deixam de ocorrer, restando pensar, então, como tais elementos considerando um sistema simulatório em que os traços que concorrem nesse sentido são outros.


Referências

AARSETH, Esper. Computer Game Studies, Year One. In: Game Studies, v. 1, n. 1, jul. 2001. Disponível no sítio <http://www.gamestudies.org>. Acesso em: 30 de maio 2011.
BARTON, Matt. The History of Computer Role-Playing Games Part 1: the early years (1980-1983). 2007. Disponível no sítio <http://gamasutra.com/features/20070223a/barton_pfv.htm.>. Acessado em: 26 de maio de 2010.
BARTON, Matt. The History of Computer Role-Playing Games Part 2: the golden age (1985-1993). 2007. Disponível no sítio <http://www.gamasutra.com/features/20070223b/barton_01.shtml>. Acessado em: 26 de maio de 2010.
BARTON, Matt. The History of Computer Role-Playing Games Part 3: the platinum and modern ages (1994-2004). Disponível no sítio <http://www.gamasutra.com/view/feature/1571/the_history_of_computer_.php>. Acessado em: 26 de maio de 2010.
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding media. Massachusetts: MIT, 1999.
CHATEAU, Jean. O Jogo e a Criança. São Paulo: Summus, 1987.
DOVEY, Jon; KENNEDY, Helen W.. Game Cultures: computer games as new media. Berkshire: Open University, 2009.
ESSLIN, Martin. Uma Anatomia do Drama. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.
LORENZ, Edward N.. The Essence of Chaos. Seattle: University of Washington, 1995.
MCLUHAN, Marshall. Games: The Extensions of Man. In: Understanding Media: the extensions of man. Massachusetts: The MIT Press, 1994.
PRADO, Décio de Almeida Prado. A Personagem de Teatro. In: CANDIDO, Antonio (Org.). A Personagem de Ficção. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1981. p. 81-102.


[1] Disponível em formato digital (pdf) em: <http://jnsilva.ludicum.org/Huizinga_HomoLudens.pdf>.
[2] Um estilo de representação visual cujo propósito é fazer com que o espectador esqueça a presença da mídia (tela de pintura, filme fotográfico, cinema e outros) e acredite que está na presença dos objetos representados.
[3] Um estilo de representação visual cujo propósito é lembrar ao espectador da existência da mídia.
[4] Tradução da autora.
[5] Texto online – html sem paginação.
[6]   As personagens gráficas em jogo que representam o jogador ou as ações deste.

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